Vês ! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera !
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro
A mão que afaga é a mesma que apedreja

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga
Escarra nessa boca que te beija

 

1884/1914

 

Todos os direitos reservados ao autor

 

 

 
AUGUSTO DOS ANJOS


Texto de José Antonio Jacob


"MONÓLOGO DE UMA SOMBRA"

"Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!"
 


Eis a primeira de trinta e uma estrofes - sextilhas, isto é, com seis versos cada uma - em versos decassílabos, métrica usada na maior parte de toda sua obra - assim alonga-se o "Monólogo de uma Sombra" - que iniciou o único volume de poesias, o Eu, do poeta paraibano Augusto dos Anjos.

AUGUSTO CARVALHO RODRIGUES DOS ANJOS, nasceu no dia 20 de abril de 1884, no engenho do Pau-d'Arco, perto da vila do Espírito Santo, Estado da Paraíba e faleceu no dia 12 de novembro de 1913, na cidade de Leopoldina, em Minas Gerais, onde foi sepultado. Foram seus pais o advogado Alexandre Rodrigues dos Anjos e Dona Córdula Carvalho Rodrigues dos Anjos, a Sinhá-Mocinha, os quais tiveram vários outros filhos. Depoimento do poeta refere que o pai morreu de paralisia geral e que a mãe era excessivamente nervosa - fórmula eufêmica para designar-lhe mal psicopático maior.

Esse poeta foi, realmente, grande. Dos maiores da nossa língua. Complexo nos pensamentos, mas, sem dúvida, personalíssimo. Não se enquadrou em qualquer movimento coletivo da literatura.
A primeira edição do Eu foi publicada em 1912, com 131 páginas, ainda em vida do Autor e financiada pelo seu irmão Odilon dos Anjos. A segunda edição foi lançada em 1920, com 128 páginas, às expensas do Governo da Paraíba. Edição organizada e prefaciada por seu amigo de mocidade, Órris Soares que também acrescentou ao texto original mais 46 composições inéditas ou recolhidas em jornais e revistas da época. Após a morte do poeta surgiram inúmeras edições onde não mais se lê na capa o título, Eu, e sim: Eu e outras Poesias.

Órris Soares, velho amigo, biógrafo e prefaciador de Augusto dos Anjos, diz que o poeta não se filiou a nenhuma escola e lamenta que ele não tenha atingido "o marco da existência em que a criatura se apodera dos esplendores e riquezas de todas as suas aptidões mentais". Órris rescorda que Augusto dos Anjos nascera sofredor e que foi essa faculdade que o elevou tão alto.

Andrade Muricy, profundo estudioso do Simbolismo, escreveu em sua obra "Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro" um interessante capítulo intitulado "Augusto dos Anjos e o Simbolismo", no qual diz que ele "seria o poeta que foi em qualquer época literária. Tal, porém, como se cristalizou, precisamente assim, só o pode ser porque passou pela atmosfera do simbolismo".

Augusto dos Anjos formou-se em Direito, porém não exerceu a advocacia e sim o magistério. Lecionou no Liceu Paraibano (Paraíba) e depois na Escola Normal e no Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro. A conselho médico, mudou-se, com a esposa e os dois filhos, para Leopoldina (Minas Gerais), onde faleceu quando exercia o cargo de Diretor do Grupo Escolar. Estava tuberculoso.

Nascido e criado sob o regime rural do patriarcalismo, foi alimentado com leite de escrava. Augusto dos Anjos descende pelo lado materno de antigos senhores de terras, os Fernandes de Carvalho, proprietários de engenhos na Várzea da Paraíba, à margem do Rio Una, um dos afluentes do rio maior.

João Antonio Fernandes de Carvalho casara-se com uma prima e vizinha, Juliana, mas esta, tendo enviuvado, decidiu romper a tradição, ao contrair núpcias fora da família. Escolheu para seu segundo marido o juíz municipal de Pedras de Fogo, lugarejo ao sul da província, na divisa com Pernambuco. Chamava-se Aprígio Carlos Pessoa de Melo. Na família ficaria conhecido apenas por Doutor, como a distinguir o intruso que penetra no seio da família e que só possuia o diploma de bacharel. Conta a tradição oral que, uma vez terminado o inventário de João Antonio, aparecera naquelas paragens o Doutor Aprígio e pedira a mão da filha da senhora do engenho, a Sinhá-Mocinha. " Não Senhor! - teria sido a resposta de Dona Juliana -. Case-se o Senhor comigo, que estou ainda moça, e case com a minha filha seu primo, Doutor Alexandre". Antes de completar um ano de casada com o juiz Dona Juliana morreu. Desde então o Doutor Aprígio passou a gerir sozinho todos os negócios da família.

O juiz era homem de luta e apoiava a dissidência liberal, era escravista, lutou contra a campanha abolicionista, e sempre permaneceu fiel aos pricípios monárquicos. Ao contrário do primo, Alexandre Rodrigues dos Anjos, que já se casara com a filha da senhora do engenho, Sinhá-Mocinha, possuía idéias abolicionistas e republicanas. Ainda assim viveu sempre no seu Engenho Pau-d'Arco, completamente afastado da política e das discussões sobre Religião e Filosofia, tão em moda no Brasil de então. Tinha vasta erudiçao, versado que era em letras clássicas, além de atualizado com a cultura do seu tempo, leitor de Spencer e até de Marx. Cuidou da instrução dos filhos, aplicando, ele mesmo, seu cabedal de conhecimentos aos mesmos. Desde as primeiras letras aos exames preparatórios, e até mesmo ao ensino do Direito, todos receberam lições de Humanidade desse pai.

Absorvido com as suas leituras e com a educação dos filhos, que o tratavam carinhosamente de Ioiô, o Doutor Alexandre não se preocuparia com os negócios da família. Era esta atribuição exclusiva do Doutor Aprígio, ou simplesmente o Doutor, como aparece no soneto Ricordanza della mia gioventù.

No final do do século XIX houve a queda do preço do açúcar e da aguardente e com isso apareceram as hipotecas e as dívidas feitas pelo patriarca Doutor Aprígio. O Engenho Pau-d'Arco estava no fim. A par da ruína financeira da família o pai de Augusto dos Anjos, Alexandre Rodrigues dos Anjos, caíra gravemente enfêrmo. Ficaria este, o Ioiô, imóvel numa cama, anos inteiros, até morrer, enquanto as prestações vencidas das hipotecas iam acumulando no Banco Emissor de Pernambuco.

Até 1908, até pois os 24 anos, Augusto dos Anjos viveu no Engenho Pau-d'Arco, de onde se afastava periodicamente para estudar. Fez todos os exames preparatórios no Liceu Paraibano, e todo o curso na Faculdade de Direito, no regime que então se denominava "exame vago", facultado aos alunos que tivessem freqüência regular, condicionando-as à argüição de toda matéria e não apenas do ponto sorteado. Daí a sua ausência quase absoluta, a sua não participação do movimento estudantil de Pernambuco. Em tempo nenhum aparecia, tinha poucos amigos, e era alheio aos regozijos da vida. Não seria visto nem em manifestações a políticos, nem mesmo nas festinhas na casa de amigos da Faculdade de Direito. Augusto dos Anjos era o grande ausente, pois estava em casa sendo preparado nos estudos por seu pai.

Em 1910 foi nomeado para a cadeira de Literatura do Liceu Paraibano, em caráter interino, na vaga aberta com a eleição para deputado federal do titular efetivo, Manuel Tavares Cavalcanti, graças ao seu próprio prestígio, como poeta e intelectual, junto ao novo presidente do Estado da Paraíba, João Lopes Machado. Logo em seguida os dois entraram em conflito devido a insistência de Augusto dos Anjos em querer "tentar a sorte" no Rio de Janeiro, e para isto queria obter uma licença que lhe garantisse o cargo, caso precisasse voltar, já que, neste mesmo ano, no dia quatro de julho, casara-se com Dona Ester Fialho. A amizade entre os dois foi rompida diante da negativa de João Lopes Machado de prestar atendimento ao pedido feito pelo poeta, e chegou mesmo a fazer pouco caso dele, que imediatamente abandonou o cargo e viajou para o Rio de Janeiro. João Lopes Machado, político de pouca expressão, estaria esquecido caso não tivesse em sua vida esse epsódio com Augusto dos Anjos.

Ainda em 1910, em carta sua, datada de 18 de outubro, comunica a uma irmã que chegou com a mulher ao Rio de Janeiro e reside na Avenida Central. No Rio, irá passar dificuldades financeiras e morar em seis diferentes casas, sucessivamente, durante os dois anos em que permanecerá na Capital do País.

Em 1 de julho de 1913 é nomeado diretor do Grupo Escolar Ribeiro Junqueira, de Leopoldina, Estado de Minas Gerais. A 22 do mesmo mês e ano chega a essa cidade mineira e a 25 assume a direção do grupo. Aos 31 de outubro do mesmo ano, é acometido de forte gripe, que se alonga por doze dias, ao cabo dos quais, no dia 12 de novembro, morre.


Vale a pena ler este artigo:
 


"Histérico, neurastênico, desequilibrado, a esse tipo de julgamento terá que se acostumar o poeta. Na Paraíba foi chamado "Doutor Tristeza". E um professor de primeiras letras, enfurecido com os temas que considerou antipoéticos dos versos do poeta publicados n'O Comércio, deu-se ao trabalho de mandar imprimir e fazer distribuir pelas ruas da Paraíba uma "carta aberta", cheia de impropérios, atacando rudemente o "Poeta Raquítico". Se Cesário Verde, em Portugal, teve pela frente um Ramalho Ortigão, que não entendeu, a princípio, a qualidade da sua mensagem, Augusto dos Anjos, teve um cidadão, um professor, de quem não se guarda sequer o nome. Mas a resposta do poeta, em versos alexandrinos, a essa "carta aberta" há de ficar. E merece ser lembrada." (Eu & Outras Poesias - Civilização Itatiaia - 1982)



Bilhete Postal
 


Ilustre professor de Carta Aberta: - Almejo
Que uma alimentação a fiambre e a vinho e a queijo
Lhe fortaleça o corpo e assim lhe fortaleça
As mãos, os pés, a perna et coetera e a cabeça.
Continue a comer como um monstro no almoço
Inche como um balão, cresça como um colosso
E vá crescendo, vá crescendo e vá crescendo,
E fique do tamanho extraordinário e horrendo
Do célebre Titão e do Hércules lendário;
O seu ventre se torne um ventre extraordinário,
Cheio do cheiro ruim de fétidos resíduos,
As barrigas então de cinqüenta indivíduos
Não poderão caber na sua ampla barriga;
Não mais lhe pesará a desgraça inimiga,
O seu nome também não será mais Antonio.
Todos hão de chamá-lo o colosso, o demônio,
A maravilha das brilhantes maravilhas.
As hienas carniçais, as leoas e as novilhas,
Diante do seu vigor recuarão, e diante
Do estribado metal de sua voz atroante
Decerto correrão mansas e espavoridas.
Se as minhas orações forem, pois, atendidas,
O senhor há de ser o Teseu do universo.
Seja um gigante, pois; não faça porém, verso
de qualidade alguma e nem também me faça
Artigos tresandando a bolor e a cachaça,
Ricos de incorreções e de erros de gramática,
Tenha vergonha, esconda essa tendência asnática,
Que somente possui o seu cérebro obtuso -
Esconda-a, e nunca mais se exponha a fazer uso
Da pena, e nunca mais desenterre alfarrábios.
Os tolos, em geral, são tidos como sábios,
Que sabem calar-se e reprimir-se sabem,
O senhor é papalvo e os papalvos não cabem
No centro literário e no centro político.
Respeite-me, portanto!
O Poeta Raquítico.



Augusto dos Anjos foi e será, tempos em fora, incluido numa modalidade de poetas chamados, a um tempo, cientificistas e filosofantes. Há que prestar atenção especial para o vocabulário do poeta. Oriundo, em grande parte, da linguagem das ciências naturais, não é ele, entretanto, apenas assim caracterizado. Ele se distingue pela riqueza vocabular de origem erudita, e na minúcia que emprega ao que designa ou exprime nos seus versos.

Desde a adolescência, quando terminava os exames preparatórios no Liceu, o poeta impressionava pela magreza e aspecto doentio, descritos por Órris Soares e José Américo de Almeida: "mais alto do que baixo, franzino e recurvo, tez encerada de moreno pálido, a fronte alongada e uns grandes olhos sem mobilidade. As mãos eram afiladas e moles, mãos de tímido. Usava um bigode mínimo, como um debrum. O andar era inseguro com os ombros lançados para a frente e o peito mais reentrante do que o seu natural. Um passo leve, tateante, como se marchasse nas pontas dos pés".

Segundo Órris Soares "A derradeira cintilação do poeta, foi o seu último soneto. Já a morte, a olhos de todos, entrara-lhe no quarto, distendendo sobre o leito asas encurvadas. De mansinho, calçando veludo, surge-lhe a inspiração para lhe beijar a fronte. A diva estremece por aquele moribundo e não quer vê-lo partir sozinho:



"Hora da minha morte, Hirta, ao meu lado,
A Idéia estertorava-se... No fundo
Do meu entendimento moribundo
Jazia o Último Número cansado.

Era de vê-lo, imóvel, resignado,
Tragicamente de si mesmo oriundo,
Fora da sucessão, estranho ao mundo,
Com o reflexo fúnebre do Incriado:

Bradei: - Que fazes ainda no meu crânio?
E o Último Número, atro e subterrâneo,
Parecia dizer-me: - É tarde amigo!

Pois que a minha autogênica grandeza
Nunca vibrou na tua língua presa,
Não te abandono mais! Morro contigo!"

Vinte e quatro horas depois, caíam-lhe as pálpebras para todo e sempre, escondendo os tesouros com que a natureza o cumulara"